No início deste ano, meu bom amigo Juan Chang participou de uma TED Talk e contou a história da castanheira-do-Brasil e de como esta árvore depende de um roedor chamado cotia para plantar suas sementes e produzir uma nova geração de árvores.
Castanheiras enormes estão espalhadas pelas florestas da Reserva Extrativista Estadual do Rio Cautário, onde a comunidade local desenvolve um projeto de carbono florestal com a Permian Brasil.
A Resex Rio Cautário é um oásis florestal em uma das mais desmatadas regiões da Amazônia brasileira. Como Juan explicou, a maioria dessas gigantes de 40 a 45 m de altura, senão todas, começou sua vida dentro de um fruto lenhoso muito duro (chamado localmente de ouriço) onde teria morrido comida por insetos ou fungos, se não fosse pelo roedor.
Cotias são amplamente distribuídas na América tropical, onde há cerca de 13 espécies, e alimentam-se principalmente de frutas e sementes. Como Juan nos contou, as cotias são as únicas criaturas com dentes afiados e dedicação capazes de roer as cascas duras dos ouriços para retirar as castanhas (de 8 a 24 por ouriço) de seu interior.
Cotias também têm o hábito de enterrar sementes para comê-las mais tarde, um hábito compartilhado com outros roedores e aves como as gralhas. A memória não é perfeita (imagino que uma cotia idosa deva ser especialmente avoada) e, como Juan notou, as cotias podem perder suas castanhas.
Aliás, as cotias estão no menu de predadores que incluem da linda pico de jaca e do misterioso cachorro-vinagre à magnífica harpia e à orgulhosa onça-pintada. Cada cotia que vira uma refeição deixa para trás um tesouro de sementes enterradas que não será resgatado.
As cotias fazem isso com outras gigantes da floresta, não apenas com as castanheiras, mas também os jatobás, tauaris, canimbucas, araparis, angelins, etc, além de muitas outras espécies menores que derrubam seus frutos no chão da floresta. Incluindo a famosa seringueira e uma diversidade de palmeiras – açaí, bacaba, babaçu, buriti, patauá – usadas pelos habitantes locais.
As maiores árvores da floresta, aquelas com diâmetro maior que 90 cm, são apenas 0,4% das 21.548 árvores que medimos na Rio Cautário, mas correspondem a 9% da biomassa e do carbono estocados nas árvores da floresta. As castanheiras são ¼ dessas gigantes.
Em 2013, as castanhas e a borracha coletadas nas florestas da Resex Rio Cautário corresponderam a 28% da renda das famílias que vivem nesta reserva. Em 2022, estas famílias coletaram 280 toneladas de castanhas.
É fácil ver como os serviços das humildes cotias têm um impacto positivo direto na vida da floresta e das pessoas. Um serviço gratuito que não é valorizado quando se come um assado de cotia ou, ironia das ironias, cotia no leite de castanha.
Voltando à fala de Juan, aquelas árvores gigantes guardarão o carbono que constitui seus corpos ao longo de séculos. Evitando que que este carbono aqueça a atmosfera e cause problemas no clima, e por consequência, para todos nós.
A menos, é claro, que aconteça alguma infelicidade, geralmente na forma de alguém com uma motoserra ou gasolina e fósforos, já que as árvores não têm o hábito de cometer suicídio serrando ou incinerando a si mesmas. Mais árvores morrem por causa de pessoas do que por causas naturais.
A Rio Cautário não é uma floresta virgem. Numa Amazônia que tem visto populações humanas chegando, partindo, se misturando e se substituindo, as árvores ainda estão se recuperando dos impactos da agricultura e do fogo causados por povos que ali viviam antes da colonização. Sítios arqueológicos próximos mostram uma presença humana contínua de mais de 6 mil anos, além da agricultura, incêndios e extração madeireira realizados pelos moradores mais recentes.
As cotias tendem a ser mais numerosas em florestas perturbadas ou em regeneração (ou secundárias), e não é surpresa que, na Rio Cautário, nossas armadilhas fotográficas as registraram em todas as 63 estações de amostragem, e pesquisas por outros mostrem que jovens castanheiras sejam frequentes nas áreas de capoeiras antigas.
Isso é ótimo, já que florestas secundárias são um sumidouro de carbono. Árvores jovens em crescimento que absorvem o gás carbônico (CO2) da atmosfera são uma das soluções mais eficazes, e com melhor custo-benefício, para mitigar as mudanças climáticas, com o bônus de ajudar a biodiversidade e o ciclo hidrológico. Como todos sabem, as árvores da Amazônia ajudam a criar a chuva que as sustenta.
O clube de jardineiros é muito mais variado que roedores fofinhos. Nas copas das árvores da Rio Cautário, macacos-aranha-pretos e outras 10 espécies de primatas consomem quantidades variadas de frutas em suas dietas, todos engolindo sementes que pegam uma carona antes de caírem no solo da floresta com uma dose de fertilizante orgânico.
Este pacote cheiroso atrai uma diversidade de espécies de besouros rola-bosta (ainda não sabemos quantas espécies), que fazem bolas de excremento com sementes misturadas e as enterram a alguma distância para alimentar suas larvas. Assim, muitas dessas árvores gigantes da floresta tiveram essa origem modesta.
Quanto maior a entrada (e a saída) maior a semente que um animal pode engolir e transportar. Macacos-aranha, os maiores primatas na região, se empanturram de frutas doces e carnudas e são dispersores importantes de árvores como canelas, breus, maçarandubas, araçás e outros. Os breus estão entre as árvores mais comuns na Rio Cautário.
Como observador de aves, também quero mencionar o clube emplumado. Aves de maior porte como mutuns, jacus, aracuãs, jacamins, tucanos, araçaris e anambés alimentam-se em boa parte de frutos e são dispersores de sementes bem conhecidos.
Na verdade, a relação entre algumas espécies de árvores e seus parceiros alados é tão próxima que pesquisadores mostraram que há uma rápida evolução no tamanho dos frutos e sementes quando aves maiores, como tucanos, desaparecem de algumas florestas, deixando apenas pequenos sabiás como dispersores disponíveis.
Embora todas estas criaturas trabalhem duro, o atual título de dispersor de sementes a granel vai para a anta. Este mamífero de 180-300 kg, membro de uma antiga linhagem com três (talvez quatro) espécies nas Américas e uma no sudeste da Ásia, tem uma dieta mista que combina folhagem e frutos colhidos de ramos baixos e do chão da floresta.
Após mamíferos gigantes como os mastodontes e megatérios, que viviam nas Américas, serem extintos uns 10 mil anos atrás por uma combinação de mudança climática, caça e incêndios causados por humanos (seus restos foram encontrados não muito longe da Rio Cautário), as antas são o único mamífero de grande porte que resta na Amazônia com a capacidade de engolir grande número das sementes de muitas árvores e movê-las por grandes distâncias.
Nomes locais como abiu de anta, goiaba de anta, araçá de anta, fruta de anta, etc. reconhecem a íntima conexão entre as antas e muitas árvores.
Anos atrás, fiz uma revisão sobre a dieta das diferentes espécies de anta e descobri que havia 35 espécies de frutos registrados na dieta desta espécie, até então, pouco conhecida, que vive no Brasil. Este número deve ser, hoje, algo em torno de 10 vezes mais. Também fiz alguns experimentos mostrando que, espécies consideradas como dispersas por aves grandes, como a juçara e a bicuíba (favoritas dos tucanos), também são dispersas de forma efetiva pelas antas.
As sementes engolidas pelas antas não apenas permanecem viáveis ao longo dos 4 a 23 dias que podem levar para viajar através do mamífero; uma única pilha de estrume pode conter centenas de sementes esperando para serem movidas pelos rola-bosta e pelos roedores ou, meramente, pela água. Pesquisa também mostrou como agrupamentos de algumas espécies, como palmeiras, podem surgir das latrinas das antas.
Além disso, outros pesquisadores mostraram que, na Amazônia, as antas depositam muito mais sementes nas florestas secundárias em comparação com florestas maduras, e como as cotias, têm um importante papel na sua regeneração e diversidade.
Você já deve ter percebido que o processo para que uma semente, no interior de um fruto, se torne uma árvore crescida, inclui vários passos e diversos atores com mais diferenças em suas características do que seu número de pernas.
Estas redes de interações são parte da biodiversidade de um ecossistema, e compreendê-las, é o trabalho de cientistas que estudam Ecologia (como eu). Conhecimento necessário para que manejemos melhor os ecossistemas naturais que restam no planeta.
Mover sementes em uma paisagem é essencial para o funcionamento das florestas nativas tão importantes para estocar o carbono em nossa biosfera. Não apenas isso, mas florestas em regeneração como aquelas que tentam crescer nos milhões de hectares de áreas degradadas nos trópicos são um ganho comparativamente fácil na luta para evitar que as concentrações de CO2 na atmosfera ultrapassem um limite que tornem a Terra um planeta pouco agradável de viver.
Para que isso aconteça, as sementes daquelas árvores grandes, longevas e de madeira densa, devem ser transportadas. Gestores de áreas protegidas e de projetos de carbono florestal como a do Rio Cautário, devem reconhecer o papel dos dispersores de sementes e incorporar sua conservação na sua estratégia de negócios, reduzindo os impactos humanos negativos sobre eles.
Infelizmente, a maioria dos grandes dispersores de sementes que vivem nas florestas ameaçadas do mundo estão em perigo devido à destruição de seu habitat e por serem, eles mesmos, alvos. Nós estamos comendo, esfolando e comercializando espécies até sua extinção e muitas das florestas remanescentes pelo mundo perderam espécies-chave porque nós, humanos, matamos até o último indivíduo.
Pesquisa recente revela como nós e nossos pets dominamos o mundo, excluindo o restante da vida.
Se todos os mamíferos da Terra, de você às baleias-azuis, dos ornitorrincos ao bulldog francês de seu vizinho, fossem empilhados e pesados, 36% desta montanha de carne seria composta por humanos, 58% por animais domésticos (na maioria gado bovino), 3,7% baleias e outros mamíferos marinhos, enquanto as demais ~6.300 espécies de mamíferos terrestres – de micromorcegos a elefantes – corresponderiam a apenas 1,8%.
E alguns ainda dizem que há terra demais destinada à natureza.
Todas as quatro espécies reconhecidas de antas estão ameaçadas de extinção. A espécie que ainda vive no Brasil já ocorreu em toda a América do Sul a leste dos Andes, da Colômbia ao norte da Argentina, e praticamente em todo o território nacional.
As antas foram eliminadas de boa parte de sua área de ocorrência histórica, como a que era a Mata Atlântica e o Cerrado – ecossistemas eliminados para dar lugar a cana, café, soja, milho, algodão e gado. Foram extintas mesmo em parques nacionais e outras áreas protegidas porque as pessoas comeram todas elas, até a última.
No outro lado do mundo, a anta-malaia, um dos mamíferos com design mais bacana, já ocorreu em todo o sudeste da Ásia e nas ilhas de Sumatra e Bornéu. Hoje há apenas populações dispersas na Tailândia, Península Malaia e Sumatra.
Em meio à perda generalizada de vida na Terra eu prefiro pensar em ação ao invés de desespero, e algumas iniciativas mostram um caminho.
Muito tem sido escrito sobre “rewilding”, que significa trazer de volta o que foi perdido e restaurar interações tornando os ecossistemas mais diversos, produtivos e resilientes. Esforços validados por pesquisas que mostram como a perda dos grandes atores, a chamada megafauna, afeta negativamente a composição das florestas, estoques de carbono no solo e regimes de fogo.
Antas estão sendo reintroduzidas em duas áreas onde foram extintas muito tempo atrás para preencher a lacuna no maquinário do ecossistema. Na Reserva Ecológica Guapiaçu, uma área privada não distante da cidade do Rio de Janeiro, antas antes cativas agora caminham livres na Mata Atlântica, somando seus esforços a um belíssimo projeto de restauração florestal.
Nos Esteros del Iberá, na província de Corrientes, na Argentina, antas são uma das várias espécies sendo reintroduzidas em um projeto ousado que eu gostaria de ver replicado no Brasil. Ambos talvez inspirem os primeiros passos de um projeto, proposto desde muito tempo, de trazer antas-malaias de volta a Bornéu.
Na Resex Rio Cautário ainda temos cotias, macacos-aranha, antas, jabutis, queixadas, mutuns, jacamins, tucanos e todos os grandes dispersores de sementes que esperávamos que ocorressem na área. Temos sorte de que o manejo ali seja para educar as pessoas sobre como ter uma convivência mais positiva com o ecossistema e proteger a reserva contra invasores em busca de grilagem fácil.
Aquelas criaturas, reduzidas a uma literal minoria, embora sejam a diversidade, não apenas têm o direito inerente a existir como todos nós. Eles não são apenas ornamentos da floresta fantásticos de serem vistos, ouvidos ou sentidos em encontros que nos fazem ganhar o dia.
Eles também são parte do sistema de estocagem de carbono que é a floresta tropical e nos dão – de graça – serviços ecossistêmicos que ajudam a mitigar a bagunça que criamos no clima do planeta. Serviços que têm um preço que apenas agora estamos aprendendo a quantificar.
Pense em quanto vale uma anta reduzida à carne de panela em comparação ao valor das árvores que ela planta na floresta durante toda a sua vida.